Desregulação do metabolismo celular na fibrose aponta mecanismos fisiopatológicos que podem ser potenciais alvos terapêuticos.
A fibrose pulmonar descreve uma condição na qual a anatomia pulmonar normal é substituída por um processo de remodelação ativa, deposição de matriz extracelular e mudanças no fenótipo de fibroblastos e células epiteliais alveolares determinando a substituição do pulmão normal por fibrose. Esta condição pode ser idiopática, como na fibrose pulmonar idiopática (FPI), ou secundária a doenças genéticas, doenças auto-imunes, exposição a toxinas ambientais, medicações, ou radiação. Uma das características principais da FPI, que é o protótipo das doenças que cursam com fibrose pulmonar, é a ativação de miofibroblastos (Mio-fb) e resistência à apoptose . Esses Mio-fb, no contexto da FPI, têm capacidade aumentada de migrar, contrair e produzir matriz extra-celular (fibrose).
Sabemos que desarranjos metabólicos estão por trás de várias doenças como Diabetes e Cancer. Sabe-se pouco no entanto sobre o papel do metabolismo celular na formação de fibrose. A investigação do metabolismo glicolítico na Fibrose Pulmonar ganhou força recentemente e vem de várias frentes de pesquisa: desde a pesquisa básica (de bancada) até a pesquisa clínica.
Na assistência, sabemos que a Fibrose "ascende" no PET (FDG-F18): quantas vezes já vimos um "PET aceso" nas áreas de fibrose PIU (no padrão de pneumonia intersticial usual)? Então sabemos que está havendo ali um aumento do metabolismo glicolítico.
Um estudo realizado em 2018 mostrou que há uma reprogramação no metabolismo glicolítico de miofibroblastos para uma via preferencial glicolítica aeróbia e que essa reprogramação é fundamental para a diferenciação final do fibroblasto em miofibroblasto e formação de fibrose. Foram identificadas enzimas que medeiam a glicólise aeróbia em miofibroblastos e o bloqueio dessas enzimas in vitro atenuou a deposição de fibrose, podendo indicar uma nova via com impacto terapêutico.
Outro estudo interessante publicado também em 2018, agora na Nature, mostrou que a metformina foi capaz de reverter a fibrose pulmonar em modelo animal de fibrose pulmonar (Bleomycin model).
Sabemos que a metformina (MTFM) é uma droga usada para restaurar a homeostase do metabolismo da glicose, reduzindo a resistencia a insulina. Além disso a MTFM é capaz de ativar uma via metabólica (do AMP- activated Kinase, ou AMPK) e pode com isso reduzir a deposição de fibrose já que a ativação desse sensor bioenergético, a AMPK, inibe a diferenciação de fibroblasto em miofibroblasto. Além disso a MTFM também age via NADPH oxidase 4 (NOX4) também com papel anti-fibrótico. Diante desse racional teórico os autores mostraram que a administração de MTFM para ratinhos com fibrose pulmonar induzida por bleomicina tinham a fibrose atenuada e até revertida (!!) com a administração precoce ou tardia de MTFM (ambos timings de administração foram efetivos).
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Daí na sequencia vem uma análise post-hoc dos estudos CAPACITY e ASCEND e tenta avaliar o efeito da MTFM na progressão da FPI, já que por serem estudos randomizados controlados onde um anti-fibrótico foi testado, seria possível ter dados completos a respeito de progressão, uso de medicações etc. E nessa análise o uso de MTFM não esteve associado com menor perda funcional pulmonar (em capacidade vital forçada - CVF) se comparado com pacientes que não usaram MTFM. Isso PODE significar duas coisas:
1. Ou os modelos animais não capturam a complexidade biológica da FPI
2. Ou a MTFM tem um efeito que não foi detectado nessa análise post-hoc por conta de variáveis confundidoras. Deixe eu explicar melhor:
Lembrem de discussões prévias nesse blog: nessa análise post-hoc não houve RANDOMIZAÇÃO para a MTFM vs. sem MTFM. A análise olhou para pacientes que usaram MTFM por motivos clínicos, e isso significa que a maioria diabetes (que também se associa a outras comorbidades) e essas comorbidades podem estar causando por exemplo um pior prognóstico para esses pacientes, impedindo-nos de captar o efeito da MTFM isoladamente.
O desenho ideal seria investigar MTFM em pacientes com fibrose pulmonar não diabéticos usando randomização.
E qual a tradução clinica desses achados? Não há nenhuma prova clínica de efeito da MTFM em redução de progressão de fibrose em humanos. Há apenas racional biológico que precisa ser confirmado. No entanto, nos meus pacientes diabéticos ou pré-diabéticos, eu sempre negocio com o Endócrino a manutenção ou entrada da MTFM como uma das drogas para a Diabetes. Adicionalmente, recomendo fortemente a favor de um controle glicêmico adequado, tendo em vista a avidez glicolítica dos Mio-Fb. A próxima pergunta científica que tem na minha mente é "qual seria o impacto de uma dieta cetogênica nesses casos?". Outra excelente pergunta científica que mereceria investigação.
Declaração de conflitos de interesse: Já recebi apoio para viagens e speaker fees da Boehringer Ingelheim e já recebi apoio para eventos e speaker fees da Roche. Já recebi apoio pessoal da American Thoracic Society. Declaro também meu compromisso com uma analise isenta (científica) da literatura disponível.
Quem eu sou? Sou doutora em pneumologia pela Universidade de São Paulo, especialista em doenças intersticiais pulmonares (é a minha praia!), coordenadora nacional do Registro Latino-Americano de Fibrose Pulmonar Idiopática (REFIPI) e médica pesquisadora especializada em ensaios clínicos randomizados pelo Instituto de Pesquisa do Hospital do Coração
Projeto Respira Evidência por Leticia Kawano Dourado
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