Post de novembro de 2022
Antes de começar, um adendo: no Brasil, esse percurso profissional em direção à pesquisa profissional não é uma carreira estruturada oferecida durante a formação médica. Trata-se portanto do que eu chamo de uma carreira oculta ou semi-oculta, eu diria.
Por pesquisa profissional eu me refiro à atividade de pesquisador como profissão, adequadamente remunerada. Não é possível fazer pesquisa profissional nas horas vagas e nos finais de semana: não se sustenta.
Aflições iniciais. Após formatura em medicina pela Universidade de Brasília (UnB), turma 65 no ano de 2002, eu não fazia A ME-NOR ideia de qual sub-especialidade seguir. Já sabia o que definitivamente não me dava "brilho no olhar" mas restavam ainda muitas opções... Me afligia ver tantos colegas com um caminho já traçado com muito planejamento e capitalizando em ações (ex. estágios nas suas respectivas áreas de interesse) e eu "à deriva": feliz por eles, mas aflita por mim :-(
Na verdade, olhando para trás vejo que nunca planejei minhas escolhas profissionais de médio-longo prazo. Ao contrário eu fui decidindo à medida que ia descobrindo opções e sentindo o interesse por algo.
Hoje concluo que foi exatamente esse modus operandis que me fez "descobrir" a pesquisa profissional: pois ela nunca existiu como opção (era oculta). Essa forma de construção de uma profissão é menos uma linha reta do que aquele planejado, mas não me arrependo. Entenda que não estou aqui recomendando falta de planejamento. Ao contrário, recomendo que uma vez identificado o interesse genuíno por algo, aí sim é preciso planejamento para aumentar as chances de se alcançar o que deseja. Cuidado com as escolhas puramente utilitaristas movidas por "dá dinheiro", "já tem a clínica do meu pai": essas sim oferecem risco de insatisfação.
Mas voltando à minha história: dentre as grandes áreas médicas, escolhi a clinica médica: gostava muito do processo de investigação diagnóstica e a clínica médica não me decepcionou. Como sub-especialidade fiz pneumologia. Após concluir a clinica médica, eu não sabia de novo o que exatamente fazer: gostava de várias especialidades que tinham como denominador comum um cuidado mais integral do paciente. Segui pela pneumologia por questões circunstanciais do programa de residência local, e também não me arrependi, mas poderia ter sido cardiologia, nefrologia, e mesmo endócrino.
Dentro da pneumologia me sub-subespecializei em Doenças Pulmonares Instersticiais (DPIs) e o motivo era de novo a coisa do desafio diagnóstico e a multidisciplinaridade da prática: em DPI há uma forte interface entre clínicos, radiologistas, e patologistas. Novamente, escolha feliz!
Pesquisa na minha vida: o começo
Na Universidade, foi onde entrei em contato com pesquisa. Fiz doutorado (2015) mas mesmo antes, durante, e depois do doutorado, já tinha bastante contato com a pesquisa de pequeno porte fazendo minhas próprias investigações observacionais (em oposição a estudos de intervenção). O gosto por investigar (que havia me levado a fazer clinica médica e DPI) me levava agora para a pesquisa acadêmica.
Aos poucos encontrando o caminho: seguindo o chamado
O progressivo entendimento de que para se investigar seja-lá-o-que-for é preciso uso de métodos adequados, me levou a fazer o PPCR, um curso de pesquisa à distancia da Harvard School of Public Health. Esse curso foi um divisor de águas para mim. Fiquei impressionada com as possibilidades e complexidades dos ensaios clinicos randomizados (ECRs), e estava convencida de que precisávamos deles, os ECRs, para fazer inferência causal sobre qualquer intervenção. Também percebi a enorme distância entre o que se estava fazendo nos EUA em pesquisa clínica e o que estávamos fazendo aqui no Brasil...
[Parêntese sobre a pesquisa acadêmica (Universitária) no Brasil]
Além de falta de verba, há antes disso, um problema sério no modelo de pesquisa nas Universidades públicas Brasileiras. Aqui falo em específico da pesquisa clínica (em oposição à pesquisa pré-clinica, da qual tenho pouco contato e portanto nao tenho propriedade para falar) Com a progressiva incorporação tecnológica e a capacidade de fazer projetos realmente grandes (multicêntricos), o modelo de financiamento da pesquisa na Universidade pública Brasileira passa a ser um obstáculo na sua modernização. O financiamento público (ex. Cnpq, FAPESP) para as Universidades é desenhado de modo a financiar insumos, não times de pesquisa (pessoas). Ocorre que o mundo todo agora produz pesquisa clinica multicêntrica com necessidade de coordenação de vários centros de pesquisa e milhares de pacientes, e o modelo "aluno-cêntrico" (aluno de pós-graduação) no estilo "pesquisador bombril-faz-tudo" não mais da conta do recado. A Universidade Brasileira não acompanha o progresso e a produção cientifica (em pesquisa clínica) vai caindo em impacto frente ao que tem sido produzido pela comunidade cientiífica internacional. Por exemplo, na minha sub-área especifica em pesquisa, a de ensaios clínicos randomizados, pasmem pela via Universitária atual não é possivel que um pesquisador proponha um ECR multicêntrico: não tem como financiar a estrutura de um ECR, não por falta de dinheiro, mas alocar dinheiro em recursos humanos (em oposição a freezers, pipetas e microscópios) não é possível. Isso quer dizer, a Universidade não tem meios de geral conhecimento em inferência causal (!!!) sobre tratamentos: o que considero essa limitação escandalosa para 2022. Ah sim a Universidade pode participar de ECRs pertencendo a outros atores (ex. IUniversidades Estrangeiras ou Industria Farmaceutica etc) mas não tem os meios de desenhar e fazer as suas próprias investigações.É como se o modelo de financiamento atual fosse ainda "cego" a essa revolução na Medicina, acontecida de uns 30-25 anos para cá.
E aí estava o desafio e a minha angústia da época: adorava o ambiente pensante e multidisciplinar da Universidae pública mas realizei que a pesquisa universitária de modo geral não estava preparada para desenhar ECRs e conduzi-los. Comecei então de novo a procurar, procurar e foi então que fui conhecer o Instituto de Pesquisa do HCOR (IP-HCOR) No meu primeiro contato lá, com o Alexandre Biasi, fui super bem recebida, o interesse foi recíproco, e passei gradualmente a atuar em projetos de outros colegas (para ter alguma remuneração) até que eu captasse meus próprios financiamentos para conduzir pesquisas na minha area de atuação primária (o que aconteceu alguns anos depois!!), a de doenças pulmonares intesrticiais.
Mogli, o menino lobo
A minha história de aproximação com a pesquisa me remete ao Mogli, o menino que foi criado por lobos até que pudesse retornar à sua tribo. Quando cheguei ao IP-HCOR não havia pesquisa em Doenças Intersticiais Pulmonares, mas fui (muito bem) acolhida na linha de pesquisa em terapia intensiva (da qual tenho treinamento formal como pneumologista), e esse acolhimento foi fundamental, o que me permitiu me desenvolver como pesquisadora capaz de captar recursos para minhas próprias pesquisas na minha área.
Entrei no projeto RENOVATE, um ensaio clínico randomizado multicêntrico, desenhado pelo querido colega Israel Maia e Alexandre Biasi, financiado pelo PROADI-SUS e apoiado pela Fisher & Paykel. Aprendi (e aprendo) taaaanta coisa no RENOVATE, elementos fundamentais para ser a investigadora principal de estudos multicentricos prospectivos: uma expansão em potência de realizar sem tamanho.
O modelo de pesquisa profissional me encantou
A forma com a qual se faz pesquisa no IP-HCOR totalmente me conquistou. É o jeito certo para dar certo. Explico: temos times sub-especializados em aspectos regulatórios, gerenciamento de centros, gerenciamento de dados, estatísticos e pesquisadores. As pesquisas tem financiamento (obrigatório!) e o trabalho de todos é remunerado, inclusive o trabalho do pesquisador. No IP-HCOR podemos desenhar o protocolo, captar financiamento e conduzir grandes ECRs para testar intervenções, e isso é sensacional.
Na COVID-19 podemos responder à altura do desafio produzindo evidência de qualidade sobre reposicionamento de drogas em COVID: testamos hidroxicloquina, azitromicina, corticoide, tocilizumab em um esforço colaborativo de hospitais privados de excelência, a COALIZAO BRASIL COVID-19. Esses hospitais têm seus Institutos de pesquisa e neles é possível fazer pesquisa clínica prospectiva multicêntrica de alto padrão.
Ter descoberto a pesquisa profissional na minha vida me fez chegar no meu IKIGAI: faço o que gosto, que é relevante para a sociedade, e sou remunerada para isso.
No Instituto de Pesquisa do HCOR temos vários colegas pesquisadores que mantém duplo vínculo: no IP-HCOR e com a Universidade, catalizando sua atuação em pesquisa na Universidade já que o IP facilita operacionaliza pesquisa que na Universidade não se consegue fazer. O IP-HCOR é em essência uma academic research organization (ARO), então o pesquisador que também é vinculado a uma Universidade, pode tanto atuar na ARO como lider central da pesquisa, assim como atuar no centro da Universidade (centro recrutador de pacientes por exemplo ou como Instituição parceira), o que é totalmente possível.
Atualmente eu moro fora do Brasil, estou em Lisboa Portugal. Sigo com meus projetos de pesquisa no IP-HCOR, como o RENOVATE, o BERTHA e o EVITA. Sou a coordenadora do grupo de pesquisadores do IP-HCOR. Além disso sou pesquisadora senior da MAGIC EVIDENCE ecosystem foundation em Oslo, na Noruega, onde trabalho no ecossitema de evidências, da evidência para a decisão (EtD framework). Quer dizer, estou uma nômade digital!
Pontos negativos da pesquisa profissional (fora da Universidade)
Antes de seguir lendo, note que meu entendimento é de que pesquisa profissional e pesquisa Universitária são atualmente incompatíveis. Sim, e o motivo é porque a oportunidade de ser um pesquisador de carreira (e viver disso) na Universidade pública Brasileira é super escassa para não dizer inexistente, em especial para quem quer fazer pesquisa clínica na forma de ensaios clinicos randomizados.
O problema de se estar fora da Universidade, basicamente, é uma perda de prestígio frente a desconhecidos. O vínculo com a Universidade ainda dá uma aura de brilho e glamour. Para alguns isso é mais importante que para outros, então algo para se contabilizar. Por exemplo, as pessoas percebem imediata qualidade em uma afiliação do tipo: "University X" enquanto que a afiliação "IP-HCOR"deixa muitos inicialmente sem saber que nivel de qualidade pode estar por trás dessa filiação (mas também isso é só uma questao de (pouco) tempo para ver que a qualidade é boa :-)
Acrescento também que esse problema de "prestígio" é mais uma preocupacao para aqueles acadêmicos focados em prestígio nacional. Sob a perspectiva internacional, é mais importante voce estar no mesmo standard de qualidade que eles estão (compartilhando de referenciais teóricos semelhantes), publicando artigos de alto impacto, do que a afiliação Universitária, já que vindo do sul global, infelizmente, seja da Universidade ou não, lidamos de cara com um pré-conceito de que a qualidade da pesquisa pode não ser tão boa (viéses subconscientes ou conscientes): então é preciso mostrar serviço.
Também acrescento que qualquer pesquisador (Brasileiros inclusive) tem o dever de buscar inserção internacional na sua respectiva comunidade científica internacional de alto padrão: a internacionalizaçao aumenta a qualidade da pesquisa que fazemos e isso é um dever ético e moral para quem faz pesquisa e usa o tempo de voluntários de pesquisa. Posso fazer um post sobre internacionalizacao (sem precisar necessariamente morar fora do país) depois, me avisem se querem ouvir sobre.
Pontos positivos da pesquisa profissional
Adoro a ideia de fazer pesquisa de alto padrão que impacta a vida das pessoas. Também penso que essa é a única pesquisa que tem base ética para existir, afinal, há gasto de energia de pesquisadores e pacientes: precisa valer a pena. Adooooro investigar e descobrir coisas novas. Ter tempo protegido (remunerado) para fazer isso é incrível.
Outros pontos interessantes positivos: comparado com a atividade clínica assistencial, eu me sinto menos sozinha (acho a atividade clínica muito solitária) e tenho mais controle do meu tempo ja que muitas atividades relacionadas à pesquisa podem ser feitas de forma flexível me permitindo mais liberdade de cuidar dos meus filhos pequenos.
Para aqueles que vislumbram trabalhar com pesquisa clínica profissional
Eu tenho algumas dicas:
1. Inglês fluente é fundamental: O inglês é a língua científica. Listening, comprehension AND speaking. A pesquisa está muito internacional, temos várias reuniões com colegas de outros países, entender e falar inglês é o básico.
2. Formação teórica em pesquisa clínica também é MUITO IMPORTANTE. Há vários cursos disponíveis, eu recomendo fortemente. Inclusive para ir te dando network: conhecendo pessoas que podem te abrir as portas para o mundo da pesquisa profissional.
Exemplos de CURSOS: O PPCR da Harvard, o MSc de Clinical Trials da London School (ambos à distancia, mas caros, o MSc mais caro de todos). Tem um curso de pesquisa clinica do BCRI, ouvi falar bem tambem. Provavelmente há outros cursos, o importante é dar a fundamentaçao teórica necessária
3. Networking É FUNDAMENTAL. Importante voce ser visto e as pessoas saberem quem é você. Redes sociais, se bem usadas, podem muito bem ajudar voce a se conectar internacionalmente.
4. Abra mão da fantasia de que só se faz pesquisa de impacto nas Universidades. Posso dizer que "muito antes pelo contrário", tendo em vista os Institutos de Pesquisa privados que surgem no Brasil e tomam a liderança em pesquisa de impacto (em ECRs). Ainda assim voce pode manter seu vínculo com a Universidade tranquilamente e capitalizar na sinergia existente entre esses dois atores.
Conflitos de Interesse:
Não tenho nenhum vínculo atual com o PPCR ou qualquer outro curso de pesquisa que mencionei aqui
Trabalho para o IP-HCOR e ADORO
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Vamos em frente!
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