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  • Writer's pictureLetícia Kawano-Dourado

Dando sentido ao estudo SENSCIS: transformando resultados em significados

Eficácia do Nintedanib no pulmão da Esclerodermia, sobre os resultados do estudo publicados em Maio de 2019 no New England Journal of Medicine.

A esclerodermia ou esclerose sistêmica é uma doença autoimune que afeta o tecido conjuntivo, ou seja é multissistêmica, tendo como principal manifestação o endurecimento (sclero) da pele (derma). Além disso, o pulmão é um órgão frequentemente acometido (em torno de 80% dos casos) principalmente na forma de fibrose pulmonar.


Figura 1: Imagem de tomografia de tórax típica da esclerodermia: atenuação em vidro fosco no parênquima pulmonar e sinais de fibrose (bronquiectasias de tração), esôfago dilatado com conteúdo líquido de estase dentro. Além disso nos painéis à direita vemos manifestações da esclerose cutânea: microstomia e esclerodactilia.


Com base em evidências produzidas por dois ensaios clínicos controlados, o Scleroderma Lung Study I e II, que tem o nosso parceiro de pesquisa Dinesh Khanna, da Universidade de Michigan como principal investigador, tratamos a doença pulmonar intersticial associada a esclerodermia (DPI-SSc) com ciclofosfamida ou micofenolato. Havendo fibrose pulmonar e com a descoberta dos antifibróticos, nintedanib e pirfenidona, a pergunta natural que se seguiu foi: será drogas antifibróticas teriam uma ação benéfica no pulmão da esclero (e por que não na pele e em outros orgãos, já que o fenômeno sistêmico é o de fibrose?)


O SENSCIS foi então um estudo prospectivo, randomizado e placebo-controlado conduzido para tentar responder à pergunta científica sobre o papel de uma droga antifibrótica, o nintedanib, na fibrose pulmonar pela esclerodermia.

No SENSCIS os pacientes com DPI-SSc poderiam estar em uso de tratamento de base (micofenolato). Esses pacientes foram então randomizados para nintedanib ou placebo e seguidos por 1 ano. Ao final de 1 ano houve um decréscimo na perda funcional de pacientes em uso de nintedanib da ordem de 40ml/ano de capacidade vital forçada (CVF) (IC95%, 2.9 - 79.0) P=0.04 



Figura 2: Note no painel A: o grupo placebo perdeu em média 90ml/ano de CVF enquanto o grupo nintedanib perdeu 50ml/ano. Painel B, note a heterogeneidade de comportamento dos pacientes com esclerodermia n opulmão: há pacientes que mesmo em uso do nintedanib perderam até 800ml/ano de CVF enquanto outros pacientes tanto do placebo quanto do nintedanib ganharam até 1.000ml/ano. Painel C: curva de variação de CVF no ano nos grupos nintedanib e placebo, note a escala (magnitude) no eixo Y.


Do ponto de vista de efeitos adversos, nada grave que tenha magnitude de efeito para ser detectado num estudo com um N de 580 pacientes foi detectado, no entanto, praticamente duplicaram os efeitos colaterais menores, como náusea, vomito, diarreia.




Ok, e o que tudo isso significa?

Traduzindo resultados em significados :-)

Essa diferença média de 40ml/ano em CVF significa uma redução de risco relativo de 44%, o que podemos concordar que é uma magnitude de efeito relativo significativa. No entanto se vocês lembrarem de posts meus anteriores comentando artigos, o risco relativo informa muito pouco a prática clínica porque está condicionado à magnitude de efeito do grupo controle. Explico: como a perda no grupo controle foi de 90ml/ano, 44% de redução relativa na perda de CVF significa apenas 40ml/ano. Por outro lado, se a perda no grupo controle tivesse sido de 900ml/ano, 44% de redução relativa significaria 400ml/ano. Vejam que a redução de risco relativo se condiciona à magnitude de efeito absoluta do grupo controle.


Então para ter a dimensão do impacto clínico de uma redução de risco relativo de 44% é preciso ver qual a diferença em termos absolutos. Em termos absolutos, 40ml/ano representa 1,6% da CVF basal média dos pacientes (CVF basal ~2.500ml)


Outro ponto importante é que esse valor médio representa comportamentos muito heterogêneos de doença (vide painel B figura 2), e essa sim é a informação que mais nos interessa na clínica: diferenciar o progressor do não progressor, não o efeito médio! E essa informação se perde completamente nos reportings de efeitos médios....


Temos então um impacto positivo de 1,6% na CVF basal média e uma duplicação na taxa de efeitos adversos com nintedanib. De novo, "duplicar" é uma noção relativa, e se o efeito adverso em questão é da ordem de 0,5%, duplicar o evento significa ter 1% de eventos, o que do ponto de vista clinico é relativamente insignificante. No entanto a taxa de evento adverso no grupo controle foi alta e duplicá-la significou ter 75% dos pacientes com diarreia, 30% de náusea e 25% de vômitos.


Outro achado digno de nota do SENSCIS foi uma analise de sub-grupo pos-hoc mostrando que pacientes usando concomitantemente o micofenolato (metade dos pacientes) tiveram menor perda com nintedanib do que pacientes fora do micofenolato:


Figura 3: Foto de apresentação do SENSCIS no Congresso Americano de Torax em Dallas em 2019. Note que estratificando pacientes pelo uso de micofenolato, a combinação de micofenolato e nintedanib parece ser mais benéfica que nintedanib isolado na DPI-SSc

Resumo da ópera:

Do ponto de vista de pesquisa, o SENSCIS é um grande avanço. Redução relativa de risco de 40% com uma amostra relativamente pequena (n = 580 pacientes) suportado por análises de sensibilidade e desfechos secundários. Tendo em vista a progressão lenta em média da DPI-SSc, é um grande feito ter demonstrado efeito positivo em 52 semanas (1 ano).


Do ponto de vista clínico: a magnitude de efeito é pequena e os efeitos colaterais não são desprezíveis. Adiciona-se a isso a dúvida sobre a manutenção de efeito terapêutico a longo prazo, vide estudo que acaba de ser publicado no Blue Journal notando um fato intrigante que o efeito benéfico dos antifibróticos na fibrose pulmonar idiopática foi observado apenas nos primeiros 2 anos de prescrição (?) - achado esse que precisa ser melhor investigado e entendido.


Resumo: Todos esses fatores complexos precisam ser levados em consideração no momento da decisão por prescrição do nintedanib na Esclerodermia.


Alguns colegas de peso com os quais conversei na ATS acham que o nintedanib deve ser prescrito para todos os pacientes com DPI-SSc mantendo controle dos efeitos adversos, outros acham que o nintedanib seria reservado para casos de alto risco de progressão (doença extensa, SCl70+) ou pacientes claramente progredindo. E você, na sua opinião, qual o espaço do nintedanib na Esclero?


Declaração de conflitos de interesse: J Já recebi personal fees e speaker fees da Boehringer Ingelheim e personal fees e speaker fees da Roche. Speaker fees e Scientific Adboard da Bristol-Myers-Squibb. Financiamento de pesquisa pela Bristol-Myers-Squibb. Declaro também meu compromisso com uma analise isenta (científica) da literatura disponível.


Quem eu sou? Sou doutora em pneumologia pela Universidade de São Paulo, especialista em doenças intersticiais pulmonares (é a minha praia!), coordenadora nacional do Registro Latino-Americano de Fibrose Pulmonar Idiopática (REFIPI) e médica pesquisadora especializada em ensaios clínicos randomizados pelo Instituto de Pesquisa do Hospital do Coração


Projeto Respira Evidência por Leticia Kawano Dourado


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