A ponta do iceberg de um cenário complexo mas com final feliz
Tenho falado muito de modificações de estilo de vida (MEVs) com vistas a longevidade e saúde no meu Instagram e aqui no blog. Nesse movimento, obviamente comer de forma saudável e restringir alimentos que fazem mal (ex. açúcar) estão na pauta.
Não infrequente alguém comenta que essa minha abordagem não ajuda quem está com uma relação conflituada com a comida (transtorno alimentar). Que essas pessoas precisam pacificar a relação com a comida e não "controlarem"o que comem. De fato, o enquadramento da minha mensagem sobre longevidade com saúde não visa pessoas com transtornos alimentares. Visa pessoas com uma relação relativamente sã com alimentos.
No entanto, esses comentários me trouxeram memórias dos anos em que eu tive sim uma relação conflituada com minha imagem corporal e com alimentos, isso há 30 anos atrás. Vim contar essa história para vocês
Cenário complexo
O problema esteve em plena expressão no final do meu intercâmbio nos Estados Unidos, quando eu tinha por volta de 16 anos. Nos meus últimos meses lá, eu vivia emoções ambivalentes. Ao mesmo tempo que eu queria voltar ao Brasil, eu não queria voltar. Eu tinha uma relação conflituada com a minha mãe e já antecipava o retorno dos conflitos.
Nessa época, ainda nos EUA, a comida passou a ser um falso refúgio. Eu comia mas parecia que a satisfação nunca chegava, um buraco sem fundo dentro de mim onde sempre estava a desejar mais comida-conforto. Entretanto não era nenhum conforto de verdade. Era tão momentaneo e passageiro aquilo tudo, o buraco sem fundo continuava e ficava mais intenso. Comia compulsivamente seguido de culpa e mal estar.
Ganhei peso, uns 6-8kg, e para mim que sou de baixa estatura, era o suficiente para todos notarem. Aquilo me deixava mais mal ainda, criando um ciclo vicioso de procurar a comida-conforto e obviamente trazendo mais mal estar com a auto-imagem.
Igualmente as várias tentativas de dietas que deram errado me deixavam ainda pior, me dando uma sensação de fracassar, o que aumentava a repulsa/chateação por mim mesma/comigo mesma e que me levavam a mais comer por conforto da alma: ciclo vicioso fechado.
Tudo isso ia acontecendo em cima de uma auto-estima que nunca havia sido "aquela" auto-estima. Tenho lembranças de criança, minha mãe brincando que eu "era boa de garfo", que para mim precisava "esconder a comida" enquanto que para minha irmã precisava "forçar para comer". Nossa como eu detestava esses comentários! Além disso também fisicamente, eu era muito diferente da minha mãe e mais parecida com meu pai, o que também me doía quando criança. Minha mãe brincava sem maldade:"quando saio na rua com a Leticia, sempre me perguntam "cade a mãe dessa menina" enquanto que a Leticia criança queria mesmo era "parecer com a mamãe": nossa como me doía isso tudo.
Sensação de sufocamento, de beco sem saída
Várias vezes tive uma sensação meio desesperadora de beco sem saída. Como se eu não visse luz no fim do túnel nem como sair daquele ciclo vicioso. Além disso com vergonha de tudo o que eu estava vivendo, não compartilhava com ninguém. Vivia numa panela de pressão mantendo as aparências sociais.
A culpa não é da mãe
Por muitos e muitos anos fiquei presa numa narrativa de vítima-algoz onde a vítima era eu e o algoz a minha mãe, que não teve sensibilidade, que me traumatizou etc etc.
Não, a culpa não era da minha mãe. E nem essa narrativa alivia nada. Conto para vocês como foi esse despertar:
Realizei a minha humanidade e pude realizar a dela. Minha mãe ofereceu o que tinha como recurso imaginando estar fazendo o melhor possível (ou as vezes só sobrevivendo, como também me ocorre por vezes). Também por vezes foi vítima de determinismos sociais sobre o corpo feminino também se preocupando em ser aceita e querendo que eu fosse aceita, isso quer dizer magra, conforme ditava/dita a sociedade.
Chegar a essa conclusão não foi simples e nem rápido, mas foi libertador. Libertador porque parar de culpar seja quem for pelas suas dores significa tomar posse das rédeas da sua própria vida. Significa aceitar/tolerar que essas coisas possam acontecer por ação de pessoas bem intencionadas, significa perdoar, lamber as feridas e se abrir para o desconhecido (a mudança da lagarta para a borboleta).
Também tem o fato de que traumas que vão passando de geração em geração são transmitidos não por que as pessoas assim o querem, mas por falta de opção, um não saber fazer diferente. Sabe aquela coisa de reproduzir a exata violência que você tanto detesta para se ver livre de um cenário de violência?
Reconhecer esses mecanismos que se reproduzem nos tornando aquilo que mais detestamos também é parte do processo de cura. Meu mantra é: "que pare em mim" e para isso é preciso ampliar a capacidade de tolerar desconforto ("bare witness"como diz a Pema Chodron)
Não sei quando o sintoma de comer compulsivo passou, mas passou
A verdade é que eu não me lembro exatamente quando o sintoma de comer compulsivo passou. Levou uns anos eu diria, pois me lembro de situações de comer compulsivo quando eu ja estava na Faculdade de Medicina (fiquei na faculdade dos 17 - 23 anos). Mas gradualmente esse sintoma foi saindo do centro das atenções e no lugar dele foram entrando em cena as emoções difíceis que precisavam de cuidado e atenção
Foi um trabalho de décadas, que me demandou coragem de olhar para dentro. Mas não só coragem, precisei de ajuda. Sinceramente só achei tal profundidade suficiente para a transformação na combinação da psicanálise (com a minha querida analista Regina Almeida em São Paulo) com as práticas de bondade amorosa do budismo. Acho que envelhecer também me ajudou, e ter me tornado mãe me deu outra perspectiva sobre a minha mãe.
Quando uma coisa dessas está acontecendo, a saúde emocional precisa ser priorizada
Não existe saúde física que resista a uma mente doente. Cuidar da saúde emocional é tão importante quanto cuidar do corpo. Minhas mensagens de longevidade com saúde por meio de exercício fisico, atençao ao acúcar e saude metabólica perdem sentido se a mente está adoecida.
Se tenho um conselho para dar é: pare tudo e priorize sua saude emocional. Se não precisar "parar tudo", ótimo, mas priorize sua saúde emocional. É essa saúde (que traz resiliência) que vai te permitir fazer outras modificações do bem na sua saúde na sua vida.
Esse problema é pra lá de comum principalmente entre mulheres e meninas, então eu também diria: não se envergonhe e vá buscar ajuda. Sabia que quase um terço das meninas no Brasil tem transtorno alimentar? Algo tão comum assim, precisa ter um componente colevito, concorda? A culpa não é sua!
O que nós como sociedade podemos fazer para proteger nossas meninas e mulheres?
Falando agora a mãe de uma menina
Eu como mãe de menina, estou bastante atenta à minha pequena e procuro ensinar pelo exemplo, uma vez que as crianças são super inteligentes e se nos virem em contradição (discurso vs prática), vão pela prática
Procuro ajudar minha filha: profundamente trabalhando minha aceitacao frente a mim mesma, trazendo humor para coisas no corpo que não gosto, buscando significados de função (além do estético) para o corpo, celebrando diferenças (biotipos, peles, jeitos) e como as diferenças são importantes por que se complementam
Finalmente
Tenho profunda empatia por mulheres sofrendo com baixa auto-estima, bringando com seus corpos, e vivendo sintomas de transtornos alimentares dos mais diversos. O que posso dizer é que há saída desse nó, e é mais fácil com ajuda.
Desejo saúde emocional e saúde física para todos e todas!
Sou Leticia Kawano-Dourado
Médica pneumologista e pesquisadora clínica
Mãe de 2
Muito bacana seu testemunho de vida, incluindo a experiência com a Psicanálise. Obrigada