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  • Writer's pictureLetícia Kawano-Dourado

Pequenas ameaças? Agrotóxicos

Agrotóxicos, um problema? Um pouco de olhar científico sobre as evidências disponíveis


Na parte 1 abordei o risco dos PFAs presentes em anti-aderentes e impermeabilizantes. Na parte 2 abordei o risco do alumínio em relação a Alzheimer e câncer de mama. Na parte 3, este post, abordo o problema dos agrotóxicos e na parte 4 abordarei o risco (se há risco) dos protetores solares!


O assunto retorna com força após as recentes medidas do Ministério da Agricultura aprovando uma nova leva de agrotóxicos no país, sendo que 44% destes são proibidos na União Europeia.



Esse é um post diferente, um pouco de método científico aplicado para consumo próprio, eu diria rs. Desde que tive filhos, passei a consumir com mais curiosidade a literatura científica nutricional (um problema em si!) e a literatura de riscos ambientais. Sempre com a perspectiva do olhar científico sobre a qualidade da evidência disponível para embasar minhas decisões domésticas de reduzir ou não o uso/consumo de determinados produtos. Resolvi então fazer esse post para compartilhar minhas reflexões.


Segundo o ministério da agricultura, pecuária e abastecimento, agrotóxico é qualquer produto ou agentes de processos físicos, químicos ou biológicos, utilizados nos setores de produção, armazenamento e beneficiamento de produtos agrículas, pastagens, proteção de florestas,e outros ambientes hídricos ou industriais; Também são considerados agrotóxicos as substâncias e produtos empregados como defolhantes, dessecantes, estimuladores/inibidores do crescimento.





Existem evidências de toxicidade por agrotóxicos?

A resposta é sim. Nos EUA está em andamento uma coorte chamada The Agricultural Health Study (AHS) que acompanha famílias ( > 89.000 pessoas!) que trabalham na agricultura em Iowa e Carolina do Norte nos EUA, e são mais expostas a agrotóxicos. Em 2018, o AHS completou 25 anos! E uma quantidade razoável de papers. Há evidência derivada dessa enorme e longa coorte de associação de agrotóxicos e linfomas, agrotóxicos e outras doenças hematológicas como mieloma múltiplo, com cânceres em geral, doenças auto-imunes, como artrite reumatoide, e mesmo perda do olfato. Isso para citar algumas - não mencionei efeitos neurotóxicos em crianças (ficaria enorme a lista, mas deem um google). Também há evidencia que exposição elevada de forma aguda em uma fase da vida, pode ter seu impacto detectado apenas muitos anos depois.


Mas não sou fazendeiro, e mais especificamente quero saber qual a evidência de risco de consumo de quantidades residuais de agrotóxico da alimentação?

A Organização Mundial de Saúde é um dos principais atores monitorando a segurança alimentar e o que se considera um nível seguro vs. elevado de agrotóxico residual na alimentação.

Nos EUA, existe a EPA: Environmental Protection Agency, responsavel por fiscalizar e normatizar o uso de agrotóxicos nos EUA. E o que pode se observar é que a EPA tem tomado ao longo dos anos uma série de medidas para reduzir a quantidade de agrotóxicos residuais presentes na comida. Exemplos: baniu alguns agrotóxicos do cultivo de batata, e frutas cítricas. Baniu outros agrotóxicos do cultivo de várias "berries" etc. E as medidas da EPA são posteriormente avaliadas quanto a sua efetividade. Por exemplo de 1995 a 2013, a EPA conseguiu reduzir em 70% a presença de carbamatos (afeta o sistema nervoso central) - basicamente restringindo o uso, uma ação especificamente focada na saúde infantil.


Adicionalmente existe evidência epidemiológica (ex. Nutri Santé - a coorte Francesa) que a alimentação orgânica esteve associada a menor incidência de câncer.


Finalmente existe plausibilidade biológica de que vários agrotóxicos são carcinogênicos: pois agrotóxicos podem alterar eixos hormonais, desencadear perturbações imunes e auto-imunidade, desencadear inflamação, lesar tecidos e lesar DNA.





Aqui você pode encontrar uma lista de concentrações máximas consideradas seguras em alguns países sérios.


Então temos evidências epidemiológicas várias (que se repetem, mostrando risco principalmente de neoplasias hematológicas) e plausibilidade biológica. Quando essa combinação ocorrre e os estudos epidemiológicos tem método robusto, você está autorizado a supor que existe sim risco. Porque eu digo "supor" em vez de usar outra palavra mais forte? Porque estudos epidemiológicos são peças do quebra-cabeças da avaliação de risco. Não são por si só suficientes. No caso do agrotóxico, soma-se a plausibilidade biológica -assim como todos os riscos ambientais que avaliamos.


Ok mas e no Brasil? Como se dá a regulação de agrotóxicos? Qual das listas de concentrações máximas de agrotóxicos seguimos?

Primeiro fato a ser conhecido: a avaliação de toxicidade dos agrotóxicos no Brasil é feita com base no efeito agudo (imediato) do agrotóxico no ser humano. Além disso, também houve um descalonamento da avaliação de risco de agrotóxicos no Brasil: antes 34% dos agrotóxicos no país eram considerados "extremamente tóxicos" agora só 2% o são de acordo com a nova classificação. Independente dessa classificação de risco, saibamos que ela não avalia o risco a longo prazo de cancer, diabetes, retardo de desenvolvimento associados aos agrotóxicos.

As produções agrícolas campeãs no uso de agrotóxicos no Brasil foram, segundo o Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Defesa Vegetal (Sindiveg), em 2017:

1º Soja

2º Cana-de-açúcar

3º Milho

4º Algodão


Não suficiente, os limites máximos de resíduos (LMRs) em alimentos são regulados pela lei no. 7.802 de julho de 1989 que permite concentração máxima aceitável em alimentos muito maiores que os limites por exemplo da União Europeia.



A título de ilustração, o glifosato, o agrotóxico mais usado no país, é permitido nos cultivos de algodão, ameixa, arroz, banana, cacau, café, cana, citros, coco, eucalipto, fumo, maça, mamão, milho, pêra, pêssego, trigo, uva, soja e na criação de patos. No caso da soja, o limite de resíduo de glifosato permitido é 200 vezes maior do que o estabelecido na Europa. Numa pesquisa recente realizada por Larissa Mies, do Dep. Geografia da USP, vemos que 27% da água coletada para a análise teve resíduo de glifosato. O glifosato é considerado provavelmente carcinogênico pela Organização Mundial de Saúde.





Recentemente foi lançado na Europa e no Brasil, o Atlas Geografia do uso de agrotóxicos no Brasil e conexões com a União Europeia . É impressionante a magnitude de diferença entre a regulação Europeia e a Brasileira ( e notem que o estudo que mostrou associação entre alimentos não-orgânicos e câncer era francês. Caso essa associação seja mesmo devido a pesticidas, imagino que a magnitude de efeito visto seria maior se o estudo tivesse sido conduzido no Brasil). Por exemplo o feijão, a base da alimentação brasileira, tem um nível permitido de resíduo de malationa (inseticida) que é 400 vezes maior do que aquele permitido pela União Europeia; na água potável brasileira permite-se 5 mil vezes mais resíduo de glifosato (herbicida) ....




Resumo da Ópera: existe evidência epidemiológica e plausibilidade biológica que a exposição residual a agrotóxicos nos alimentos está associada a riscos à saúde em particular câncer. Esses estudos epidemiológicos foram realizados em países com tolerância bem inferior a resíduos agrotóxicos nos alimentos se comparado ao Brasil. Minha opinião é a de que tendo em vista a balança de custo-benefício, aos que tiverem possibilidade de optar por alimentação orgânica certificada, esta é preferível, pensando em riscos a longo prazo. Enquanto isso é preciso haver um debate na sociedade sobre medidas para conter essa exposição, pois a contaminação da água, solos fica além da possibilidade de atuação individual.


Lembrem-se que a questão não é a pequena magnitude de efeito nocivo de pequenas quantidades de agrotóxico mas este efeito somado ao tempo, somado a outras inúmeras exposições com riscos baixos: poluição ambiental, PFAs, alumínio, parabenos, BPAs, obesidade, cigarro, sedentarismo, alimentos ultraprocessados, e outros desconhecidos...e é assim que pequenos "odds ratios" de risco, somados à predisposição genética, se transformam numa manifestação clínica bem estabelecida de causa multifatorial, ex, canceres outras doenças.



Declaração de conflitos de interesse: nenhum


As opiniões aqui veiculadas representam minha posição pessoal.


Projeto Respira Evidência por Leticia Kawano Dourado




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