Dra. Karime Kalil, médica oncologista, compartilha sua reflexões sobre a vacina contra os papilomavírus humanos (HPV)
Esse é um post especial, onde tenho o prazer de ter uma médica que admiro, a Dra. Karime Kalil Machado, escrevendo sobre sua área de atuação, cânceres ginecológicos, e mais particularmente, sobre a prevenção deles.

Dra Karime Kalil conta:
Ao longo dos meus dez anos de prática como oncologista, as duas perguntas mais frequentemente endereçadas a mim por meus pacientes e seus familiares são:
“O que causou meu câncer? Seria possível tê-lo prevenido de alguma forma?” Embora nestes momentos minha missão seja trazer aos meus pacientes acolhimento e eximi-los de qualquer sentimento de culpa, o fato é que sim, existem oportunidades de prevenção do câncer desconhecidas pela maioria das pessoas.
Já na década de 80 estimava-se que a maioria das mortes por câncer ocorriam devido a fatores de risco evitáveis, sendo 35% atribuídas à dieta, 30% ao uso de tabaco e cerca de 10% a infecções. Dados mais recentes mostram que cerca de 54% dos cânceres podem ser atribuídos a fatores modificáveis, como tabagismo, sobrepeso/obesidade, dieta, álcool, inatividade física, radiação ionizante, poluição e 5% deles por vírus.
Neste contexto, as infecções pelos Papilomavírus humanos têm relevância global devido a sua alta prevalência e associação a ao menos seis tipos de câncer. Os Papilomavírus humanos (HPVs) são vírus que infectam a pele e mucosas. Dos mais de 200 subtipos virais, aproximadamente 40 infectam o trato anogenital e causam infecções assintomáticas, verrugas genitais ou cânceres de colo do útero, vagina, vulva, ânus e pênis, os quais ocorrem por infecções com subtipos oncogênicos (16, 18, 31, 33, 35, 39, 45, 51, 52, 56, 58 e 59). Cânceres de orofaringe podem também ser causados por esses vírus.


Destes cânceres causados pelo HPV, o câncer de colo de útero é o mais prevalente. Acomete aproximadamente 500 mil mulheres ao ano e faz suas vítimas principalmente em países de baixa e média renda, onde estratégias de prevenção são ausentes ou subótimas já que essas neoplasias se desenvolvem ao longo de uma janela de anos, sendo possível o diagnóstico de lesões precursoras através de exames de rastreamento como o Papanicolau ou teste de HPV.
O Brasil não foge dessa estatística. Aqui, o câncer de colo de útero, quase que 100% causado pelo HPV, é a terceira neoplasia mais comum e a quarta causa de morte por câncer em mulheres, com aproximadamente 16.590 mil casos ao ano (15,43 casos a cada 100 mil mulheres) e aproximadamente 5.727 óbitos.
Por se tratar de uma doença passível de prevenção e curável quando diagnosticada em fases iniciais, em maio de 2018, a Organização Mundial de Saúde (OMS) fez um chamado pela eliminação dessa neoplasia como problema de saúde pública, quando se atingiria incidência inferior a 4 casos para 100.000 mulheres-ano. Para que isso seja possível, estabeleceram-se três metas para 2030: vacinação contra o HPV de 90% das meninas aos 15 anos, rastreamento com um teste de HPV de alto risco de 70% das mulheres aos 35 e 45 anos e tratamento adequado de 90% das mulheres diagnosticadas com câncer ou lesões precursoras. Dessas metas, a considerada de maior impacto populacional é a prevenção primária através da vacinação.
Estudos baseados em modelos matemáticos mostram que até 2069, cerca de 12,5 a 13,4 milhões de casos podem ser evitados com essas estratégias e as evidências do mundo real sugerem que este objetivo ambicioso é possível.
Uma meta-análise publicada em 2019, com dados de programas de vacinação de 14 países incluindo mais de 60 milhões de meninas, demonstrou redução de 83% nas infecções contra o HPV 16 e 18, redução de 67% nos diagnósticos de verrugas genitais e redução de 51% na prevalência de lesões precursoras em meninas de 15-19 anos, 5-9 anos após o início dos programas.
Em mulheres de 20-24 anos, as reduções foram de 66%, 54% e 31%, corroborando a expectativa de maior eficácia em indivíduos mais jovens. Reduções significativas na incidência de verrugas genitais foram também observadas em meninos de 15-19 anos (48%) e de 20-24 anos (32%).
E como anda a prevenção primária (vacinação) no Brasil?
As infecções por HPV são muito prevalentes em nosso país e ocorrem em cerca de 54,6% dos jovens entre 16-25 anos de diversas capitais. Infecções por HPVs oncogênicos ocorrem em 38,4% dessa população.
Dispomos de três vacinas contra o HPV: a vacina bivalente (Cervarix®) contra os HPVs 16 e 18, a vacina quadrivalente (Gardasil®), contra os subtipos 6, 11, 16 e 18 e a vacina nonavalente (Gardasil® 9), que oferece proteção adicional contra os subtipos 31, 33, 45, 52 e 58.
Para quem é a vacina? A vacina quadrivalente faz parte do calendário vacinal do Programa Nacional de Imunizações Brasileiro e deve ser administrada em duas doses, com intervalo de seis meses, a meninas de 9-14 anos e meninos de 11-14 anos. Meninas e meninos que chegaram aos 15 anos sem completar as duas doses da vacina podem também atualizar o esquema vacinal. Além disso, devem também ser vacinadas pessoas de 9-26 anos vivendo com HIV e pacientes transplantados ou oncológicos.

Embora a vacina esteja amplamente disponível na rede pública, nossos índices de cobertura vacinal cumulativa desde a 2014 estão muito aquém da meta preconizada: menos de 60% das meninas e de 25% dos meninos da população-alvo foram vacinados.
Dentre as possíveis razões para a baixa cobertura, podemos citar a ausência de um programa de vacinação nacional dentro das escolas (nos últimos anos, caminhamos na contramão de países desenvolvidos ao retirar a vacinação das escolas públicas), dificuldades para pais que trabalham em levar as crianças aos postos de saúde em horário comercial, crença dos pais que a vacinação não é necessária, receio que antecipe a atividade sexual ou conversas francas sobre o assunto e, finalmente, medo de possíveis efeitos adversos, maximizado pela inundação de notícias falsas a respeito do tema.
E o que sabemos até o momento acerca da segurança das vacinas para o HPV? De acordo com a OMS, dados de segurança após mais de 270 milhões de doses administradas das vacinas em todo o mundo mostram que a vacina é extremamente segura, altamente eficaz e confere proteção duradoura. O risco de anafilaxia, por exemplo, foi caracterizado como de aproximadamente 1.7 casos para cada um milhão de doses e até hoje não se confirmou aumento no número de eventos adversos sérios em comparação a populações não vacinadas da mesma faixa etária. Eventos adversos não sérios e passageiros incluem desconforto, vermelhidão e inchaço no local da injeção, náuseas, tonturas, dor de cabeça, febre e desmaios.
Com argumentos tão sólidos favorecendo a implementação de estratégias coordenadas de prevenção primária (vacinação) e secundária ("papanicolau") do câncer de colo de útero, não as priorizar é um ato de negligência. Negligência com o futuro de nossas crianças, com a saúde de nossas mulheres e de todos aqueles que ainda não conhecem essa história.
De volta ao consultório, este é o momento de nós, médicos, fazermos a nossa parte transmitindo informações baseadas em evidências sobre o que de fato pode ser feito para evitarmos e (talvez?) eliminarmos o câncer.

Karime Kalil Machado, MD, MBA
Médica Oncologista do Hospital Sírio-Libanês, Unidade Brasília
Aluna do Master of Public Health, Johns Hopkins Bloomberg School of Public Health
Declaração de conflitos de interesse: nenhum
As opiniões aqui veiculadas representam a posição da Dra. Karime Kalil, e são endossadas por mim.
Projeto Respira Evidência por Leticia Kawano Dourado
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