A maternidade e a revolução digital: inesperados parceiros
Pesquisas mostram que candidatos do sexo masculino entre 20 e 30 anos são preferidos a mulheres nessa faixa etária. A preocupação é que nessa faixa etária a contratação de uma mulher possa implicar para a empresa ter que lidar com a ausência que a licença maternidade impõe. 40% dos líderes admitem sentirem-se inseguros de promover ou contratar uma mulher em idade fértil para cargos de liderança pelo mesmo motivo acima.
Alguns líderes justificam sua prática afirmando que mulheres que retornam ao trabalho após a licença maternidade não são mais tão produtivas. Esse mindset tem mudado mas ainda existe por aí, fato. O que tenho a dizer é: esse é um mindset que tem se tornado anacrônico em face da revolução na forma que produzimos/ que trabalhamos.
1. A revolução digital e as mulheres
Estamos vivendo uma verdadeira revolução, a revolução digital, ou 3a revolução industrial, na forma de produção de bens de consumo e de prestação de serviços. A principal característica dessa revolução é automatização digital de quase todos os processos produtivos e a velocidade exponencial das mudanças. Na medicina estamos presenciando mudanças significativas em diagnósticos, cirurgias remotas, processos, monitoramentos vários passam a ser realizados a distância, de forma autômata. A participação humana em processos vai se reduzindo progressivamente e cresce o valor em habilidades psico-emocionais gerenciais como:
- influenciar outros
- negociar
- diplomacia na resolução de conflitos
- assertividade
- inovar por meio de colaboração coletiva
- manejar emoções próprias e de terceiros de forma efetiva
Para qualquer mulher que já passou pela experiência da maternidade sabe que ter um(a) filha(o) é um estágio avançado e intenso em todos os tópicos acima descritos :-).
Crianças chegam ao mundo na forma de instintos desorganizados envolvidos pela inocência da infância. Essa combinação de falta de civilização e inocência tornam o processo de formação de uma criança em algo especial, onde o agente da civilização (nós!) ensina limites, habilidades sociais mas munido de amorosidade e paciência - afinal é uma criança! E isso que torna a experiência da maternidade tão positiva no mundo atual. Trata-se de habilidades sócio-emocionais praticadas à exaustão!
Para as mães que leem esse texto, pensem nas habilidades que nos são exigidas para tirar uma criança de um estado de mente turbulento, ou para resolver um impasse entre crianças durante uma brincadeira, ou para ensinar a criança a conseguir algo que deseja?
Minha impressão pessoal ao passar pela maternidade é que se trata de uma experiência intensa de amadurecimento emocional: aspecto cada vez mais valioso no novo mundo digital que se desenha num futuro próximo.
2. A maternidade forja uma profissional com senso de justiça e ética aguçados
A maternidade aguça profundamente um senso de justiça e de ética pois estamos 24h do dia sendo modelos para os futuros pequenos cidadãos e ensinando conceitos fundamentais para o bom convívio em sociedade. A prática consciente e repetida de comportamentos sociais corretos como forma de exemplo para os filhos reforça enormemente esses aspectos nas mães. Passei a observar isso à minha volta e em mim: um senso aguçado de fazer o que é correto e justo é o que prevalece entre mães.
3. Não há espaço moral nem de relógio para procrastinação
Mães tem um compromisso com o fazer bem feito, parte disso é fruto do item 2 acima. Ao mesmo tempo que fazer bem feito é desejável, fazer rápido também é, pois há crianças em casa esperando! Façamos bem feito, façamos rápido pois há mais coisa a fazer!
4. Criatividade
Ah...a maternidade nos expõe a uma série de experiências "outside the box", e não há nada mais catalizador de criatividade do que ciscar fora do terreiro. Além disso a necessidade de resolver os desafios da criança, para os quais nenhuma de nós teve curso formal "abre o portal da criatividade": não há outra opção, queremos o melhor para nossos filhos, iremos descobrir o que é esse melhor mesmo sem saber e aprenderemos muito.
5. Conflitos humanos passam a ser bem menos ameaçadores do que já foram: maior habilidade de resolvê-los
Como sociedade, temos deixado a barbárie para trás, estamos atravessando uma revolução também civilizatória, saindo de soluções concretas para os conflitos (como por meio da força física) para o campo diplomático (das ideias). E nesse cenário, ora ora, se a maternidade não é 90% estar lidando com conflitos humanos? Frustração por necessidades não atendidas expressas na forma mais instintual possível (o típico se jogar no chão esperneando por algo rs), brigas com colegas, amigos e irmãos, choros intensos e inconsoláveis por motivos aparentemente fúteis, convencer uma mente infantil a mudar o objeto do desejo rsrsrsrs... ah e os irmãos.... quando esses aparecem, somos expostas ao papel de mediador de conflitos 24h por dia, 7 dias da semana! Mães são pensadoras laterais (lateral thinkers) por excelência: sem entrar em choque direto é preciso tangenciar o conflito e resolvê-los de forma criativa!
Resumo da Ópera: com as modificações na forma de produção forjadas pela revolução digital iremos nos deparar com um outro cenário de trabalho muito em breve: local de trabalho mais flexível, produção versus presença, habilidades sócio-emocionais em alta. Todos esses aspectos tornam a profissional-mãe progressivamente mais e mais desejável. Após passar eu mesma pela experiência da maternidade por duas vezes, posso afirmar com segurança que foi/está sendo uma das experiências de maior impacto sócio-emocional que tive até hoje.
Declaração de conflitos de interesse: nenhum
Projeto Respira Evidência por Leticia Kawano Dourado
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