Análise de nexo causal entre 2 variáveis
A Fibrose Pulmonar Idiopática (FPI) é uma doença que se caracteriza por fibrose progressiva dos pulmões determinando uma mediana de sobrevida de 2,5 a 3,5 anos [1]; A doença do refluxo gastro-esofágico é a repercussão patológica de refluxo de conteúdo gástrico em direção ao esôfago [2].
O refluxo gastro-esofágico (RGE) é uma causa comum de sintomas respiratórios em pessoas sadias e em pessoas com doenças pulmonares de base, como asmáticos e DPOC [3,4]. Sabe-se também que o RGE está presente numa parcela considerável de pacientes com FPI [5,6].
Acaba de sair publicado um artigo sobre a associação entre RGE e FPI no European Respiratory Journal [5]. Nesse artigo os autores Londrinos reportam a associação de hernia de hiato e progressão de doença e mortalidade em FPI.
E eu pergunto para vocês: Lendo o título do artigo abaixo, você ficou com a impressão de que a hérnia de hiato CAUSA progressão de doença e aumento de mortalidade em FPI?
Se você percebe que o título sim comunica causalidade, não há nada de errado :-), simplesmente você está assumindo que a palavra "associado" é uma forma indireta de falar " causa". Na comunicação diária, não científica, não há problema nenhum nisso. No entanto em pesquisa científica, "associação" tem significado próprio e bem específico e significa simplesmente "relação associativa", não (necessariamente) causa [6]. Por exemplo: a coluna de mercúrio de um termômetro sobe quando há febre. A subida da coluna de mercúrio está associada à febre (mas sabemos que não causa febre, certo?). Fácil né? Ocorre que em investigações científicas, diferente do exemplo da febre e do termômetro, nós não sabemos a priori qual a resposta certa, então o termo "associação" comporta em si uma certa dose de incerteza, que é normal em qualquer trilha até uma descoberta científica. Quer dizer, reportamos uma associação porque foi o que foi o que possível de declarar na tentativa de fazer uma inferência causal.
Voltando ao artigo do grupo londrino de Doenças Intersticiais recém-publicado [5] os autores analisaram retrospectivamente pacientes com FPI entre 2011 e 2017. Retornaram nos exames de imagem e categorizaram os pacientes com FPI em dois grupos: hernia hiatal presente ou ausente.
Hernia hiatal esteve presente em 42% dos 89 pacientes analisados (note que o estudo é pequeno!). Pacientes com hérnia eram mais jovens, e tiveram declínio significativamente maior de FVC que pacientes sem hérnia. O tempo médio de seguimento da coorte foi de 37 meses. O HR (hazard ratio) da presença de hernia hiatal na sobrevida livre de transplante foi de 1.74 (IC95% 0.95 - 3.2 , p = 0.07). Esse HR foi derivado do modelo de Cox ajustado para idade, genero e CPI (composite physiologic index). Notem que o intervalo de confiança de 95% (IC95%) inspira que essa associação entre hernia e mortalidade em FPI seja mais investigada. Pode ser que seja apenas falta de poder tendo em vista a amostra pequena.
Então eu volto a perguntar, após ler os resultados do estudo, teríamos evidencia suficiente para concluir que a presença de hernia de hiato num paciente com FPI piora seu prognóstico?
A resposta é NÃO.
Porque não? Porque pode ser que a hernia hiatal seja um confundidor. Quer dizer, a hérnia pode ser um marcador de pacientes mais graves (por exemplo, o aumento da retração elástica pulmonar causada pela fibrose do poderia aumentar a pressão negativa intra-torácica e desencadear o surgimento de uma hernia?). Desse modo, diante de estudos com design retrospectivo onde não temos o nexo temporal para nos mostrar se a hernia veio antes da progressão, fica muito dificil de afirmar causalidade.
Pior ainda seria concluir com base nos dados desse estudo que se tratarmos a hernia de hiato (com fundoplicatura por exemplo) poderia então melhorar o desfecho de pacientes com FPI! Essa é uma boa hipótese, MAS precisa ser testada.
E foi isso que foi feito no estudo WRAP-IPF [7]. Nesse estudo objetivou-se testar a segurança e a factibilidade da fundoplicatura no tratamento do RGE em pacientes com FPI. Pacientes com FPI e RGE foram RANDOMIZADOS para receber fundoplicatura ou não. A técnica se mostrou factível e suficientemente segura e de quebra pudemos notar que pacientes que foram submetidos a fundoplicatura tiveram menor taxa de exacerbações, menor declínio de CVF, menos tosse e menor mortalidade: tudo não significativo, mas todos desfechos exploratórios apontando mesma diferenção de efeito (a de que o tratamento do RGE melhora desfechos clinicos em FPI.
Quer dizer, estamos diante de vários desfechos com resultados estatisticamente não-significativos mas que analisados dentro do contexto informam mais do que o resultado do estudo observacional inicialmente descrito [5]. Por que?
1. Porque houve randomização (merece um post sobre randomização, porque é tão incrível!)
2. Porque há nexo temporal (fundoplicatura antecede os desfechos)
3. Porque diferentes desfechos apontam todos para a mesma direção (se fosse apenas pelo acaso, uns apontariam para uma direção outros para outra).
Ainda assim, para mantermos o rigor científico: não estamos diante da evidência definitiva de causalidade entre RGE e FPI, apenas estamos reduzindo a incerteza progressivamente.
Comentários são bem-vindos!
Declaração de conflitos de interesse: Já recebi apoio para viagens e speaker fees da Boehringer Ingelheim e já recebi apoio para eventos e speaker fees da Roche. Participo atualmente de atividades de educação médica da Roche e Bristol Myers Squibb relacionadas aos produtos Tocilizumab e Abatacept, respectivamente (para Artrite Reumatoide). Declaro também meu compromisso com uma analise isenta (científica) da literatura disponível.
Quem eu sou? Sou doutora em pneumologia pela Universidade de São Paulo, especialista em doenças intersticiais pulmonares (é a minha praia!), coordenadora nacional do Registro Latino-Americano de Fibrose Pulmonar Idiopática (REFIPI) e médica pesquisadora especializada em ensaios clinicos randomizados pelo Instituto de Pesquisa do Hospital do Coração
Projeto Respira Evidência por Leticia Kawano Dourado
1 Ley, B.; Collard, H.R.; King, T.E. Clinical Course and Prediction of Survival in Idiopathic Pulmonary Fibrosis. Am. J. Respir. Crit. Care Med. 2011, 183, 431–440. .
2 Katz PO, Gerson LB, Vela MF. Diagnosis and Management of Gastroesophageal Reflux Disease. Am J Gastroenterol 2013;
3 Global Initiative for Asthma (GINA). https://ginasthma.org/
4 Global Initiative for Chronic Obstructive Lung Disease (GOLD). https://goldcopd.org/
5 Mackintosh JA, Desai SR, Adamali H, et al. In Patients with Idiopathic Pulmonary Fibrosis the Presence of Hiatus Hernia is Associated with Disease Progression and Mortality. Eur Respir J 2019; in press
6 Lederer, D. J., et al. Control of confounding and reporting of results in causal inference studies: guidance for authors from editors of respiratory, sleep, and critical care journals. Ann. Am. Thorac. Soc. 16, 22–28 (2018).
7 Ganesh R, Pellegrine AC, Yow E, Flaherty KR et al. Laparoscopic anti-reflux surgery for the treatment of
idiopathic pulmonary fibrosis (WRAP-IPF): a multicentre, randomised, controlled phase 2 trial. Lancet Resp Med, 2018.
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